Várzea, batuque e serpentina - Uma crônica de Michel Yakini.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014) e mensalmente escreverá para o Nagalera.

Várzea, batuque e serpentina - Uma crônica de Michel Yakini.
Colóquio Literatura (França) Participação do escritor Michel Yakini IV Colóquio Internacional sobre Literatura Brasileira Contemporânea, em Paris. Foto: Arquivo Pessoal/Michel Yakini

   O samba me pegou na mão e me fez arrepiar, ainda menino, na várzea. O futebol me deu as primeiras intenções de batucar no corpo, imitar os ritmos, os repiques, e namorar uma bateria. Todos os domingos, eu ia ao campo do União, pertinho de casa, ver os jogos, principalmente do Escudo Negro e do Ajax, e chegava mais cedo só pra ver a bateria surgir.

    Os meus vizinhos com os instrumentos na mão faziam brilhar meus olhos, pela força e pela festa que pulsavam das baquetas. Às vezes, quando o jogo do Ajax era fora de casa, eu ia no caminhão, escondidinho, e me nutria daquela adrenalina, desde a saída na sede (no buteco do Zé Pretinho), onde um quadro informava o jogo da semana.

    Ficava lá esperando a peleja começar e torcendo pra alguém da bateria me reconhecer, me chamar pra tocar, me perguntar se eu queria aprender…

    Isso nunca aconteceu, na maioria das vezes nem percebiam minha presença. Pensava que era pelo meu tamanho, mas tinha a ver com certo feitiço que paira em quem toca na bateria, e por mais que a falta de coragem me mantivesse distante, eu era enfeitiçado também.

    No samba da várzea o coro da torcida não tem letras ensaiadas, versos rimados, palmas em sincronia, mas a cornetagem é de dar dó, em vozes não muito numerosas, mas vibrantes, acompanham o ritmo e aguardam ansiosas a apoteose do gol, obra dos príncipes de ladeira.

    Como não consegui tocar na bateria, sonhava em jogar embalado por essa magia. Tempos atrás os instrumentos foram proibidos nos estádios, por causa da violência, e graças à várzea, o samba continuou em sintonia com a bola, e o futebol em São Paulo não se tornou aquela coisa pomposa de violino e ópera da Champions League.

    Foi assim que assumi o samba como trilha sonora do futebol. Foi na marcação do surdo ditando o toque de bola, no repique bailando a cadência do drible, no solo da caixa inspirando a correria do ponta-esquerda, na ginga que emana da várzea.

    O laço entre o samba e o futebol na cidade é firme e não se desfaz. A batucada que começa na sede, firma no busão e sacode nas canchas de terra, tem fundamento nos blocos de carnaval que representam os bairros e nas torcidas organizadas, onde a maioria se divide entre a emoção da beira de campo e o calor do sambódromo.

    Sempre quis ser um jogador profissional, o talento e a sorte não ajudaram, mas, pelo menos, realizei meu sonho varzeano: o de subir poeira, com o pé na bola, ouvindo o batuque, a bateria de alambrado e assim fiz do futebol a minha folia e do terrão a minha avenida.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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