Vida de arqueiro - Crônica de Michel Yakini

O guarda-meta é o único jogador que tem espaço demarcado em campo, a grande área, o espaço da solidão, onde fica com as traves, suas protetoras, por vezes traidoras.

Vida de arqueiro - Crônica de Michel Yakini
Foto: Nagalera FC - Goleiro Eliomar na final do campeonato de Dom Avelar.

… Eu vou lhe avisar
goleiro não pode falhar
não pode ficar com fome
na hora de jogar…
Jorge Ben Jor - Goleiro (eu vou lhe avisar)

A posição mais marginal do futebol é a de goleiro. O ditado diz: onde ele pisa não nasce grama. Normalmente é o número 1, por isso quando a bomba estoura ele é o primeiro a levar a culpa.

Se o atacante erra: gol perdido. Se o meio campo vacila: passe errado. Se o lateral se atrapalha: sobra pra cobertura, mas se a zaga fura é fatal, o canhão dispara na cara do goleiro.

Ele pode ter feito milhões de defesa, mas só os gols sofridos são computados, é um artilheiro as avessas. Um corpo estranho, que usa as mãos no mundo onde reina os pés. Um anti-herói que quando vai bem garante o 0x0, o placar mais desanimador que existe.

Dizem que os goleiros são predestinados, possuidores de dom, mas creio que a maioria deles começa a carreira pela renegação. Na pelada, quem sobra vai pro gol, seja quem não tem muita intimidade com a bola, ou não gosta muito dela. Além dos mais gordinhos que preconceituosamente são colocados no gol pra participar da brincadeira. 

Antes eles eram chamados de arqueiros, pois quando tudo ainda era chamado de football, os matches eram jogados com dois arcos, onde ficavam os tais arqueiros, também conhecidos como golquíper.

Quando esse renegado começa levar a coisa a sério, se torna um goleiro em potencial e passa a ser o que mais treina, pois tem que ser infalível, mesmo quando o time inteiro não joga nada.

O guarda-meta é o único jogador que tem espaço demarcado em campo, a grande área, o espaço da solidão, onde fica com as traves, suas protetoras, por vezes traidoras. É o único jogador com tempo limite pra ficar com a bola, e que tem no ato de usar as mãos a miragem da vantagem, que na verdade é uma obrigação do êxito, um trabalho duplo, pois vira e mexe ele também tem que usar os pés.

Só não são mais marginais no jogo do que o juiz e o bandeirinha, que na ótica da torcida são a última casta do futebol, mas na regra esses são autoridades, por isso marginal pleno só mesmo o goleiro. Ainda que, tirando o futebol de golzinho e de gol dentro d´área, no jogo pode faltar de tudo, jogador, juiz e até a bola, menos o goleiro, pois ele é parte essencial de uma peleja minimamente séria.

Há vários tipos de goleiro:
Paredão: que é ídolo da torcida pelo tanto de vezes que evitou um fracasso do time e por isso sempre tem um crédito pra falhar de vez em quando.

Mão de pau: adora fortes emoções. Rebate como se estivesse jogando taco. Especialista em catar moscas no pé do atacante.

Frangueiro: clássico! Quando deixa sua marca dá mais graça ao jogo. É difícil achar um, até entre os paredões, que nunca tenha vivido seu dia de frango.

Pavão: que inventa roupas coloridas, defesas malabaristas, faixas na cabeça e similares.

Atacante frustrado: gosta de sair de área driblando o time adversário e às vezes esquece que é goleiro.

Artilheiro: avis rara! Bate falta, pênalti e disputa a artilharia do time.

Suicida: no final do jogo corre pra cabecear o escanteio, tentando diminuir o prejuízo. Como dificilmente consegue o gol, deixa a torcida em pânico.

Amostrado: é o preferido dos fotógrafos e narradores exagerados. A bola vem lenta, na altura da sua cintura, mas ele salta feito um leopardo pegando a presa.

Mas só duas qualidades são inerentes em todos eles: a de ser vilão e herói no mesmo disfarce e também a de ser a única espécie de boleiro que ainda resiste em ser fiel e amar o clube que joga. Em tempos que os craques mordem um escudo a cada temporada, os goleiros ficam anos e muitas vezes uma carreira inteira num só clube. E por essas e por outras eles merecem ser dignamente o número 1.

Há muitos goleiros históricos, o tema daria uma enciclopédia. Mas alguns casos são especiais, se tornaram mitos. Daqueles que não vimos jogar, mas somos íntimos da sua obra. Como do “Aranha Negra”, Lev Yashin, goleiro russo, considerado por muitos como o maior de todos. Disputou quatro Copas do Mundo, dizem que gostava de tomar umas biritinhas antes do jogo, e perguntado o porquê do ritual, ele afirmava que a vodca era importante pra “tonificar os músculos”. Esse era do tipo Paredão.

Barbosa, goleiro do Brasil da Copa de 50, o maior velório do futebol nacional, era o melhor goleiro do país na época, mas pelo resto da vida levou a culpa pela derrota na final. Em uma entrevista, 47 anos depois, Barbosa disse que estava cumprindo mais que uma pena máxima pela falha e morreu em 2000, sem absolvição. Barbosa era negro e seguindo a lógica do país, já nasceu condenado e sem pena branda. Ficou eternizado, injustamente, como um Frangueiro. 

Outro arqueiro marcante, que vi jogar na TV, foi o mexicano Jorge Campos, que disputou as Copas de 94 e 98. Campos era baixinho e possuía uma habilidade de atacante, tanto que jogava em sua equipe, o Pumas, como centroavante. Já jogou no gol com a 9 e na linha com a 1. Exibia uniformes que mesclavam verde-limão, roxo, laranja e rosa choque. Se garantia em defesas, um tanto estranhas, mas eficientes. Era um misto de Pavão, Paredão, Artilheiro e Amostrado.

Ser goleiro, pode ter lá suas glórias, mas é uma posição ingrata. Se o gol é o momento mais esperado do jogo, que sentimento sobra pra quem tenta de todas as maneiras evitar nossa alegria? Ou mesmo quando ele não consegue evitar o gol adversário? Por isso, ser goleiro exige alguns cuidados: tomar um banho de defesa antes de cada peleja; mandigar os caminhos da grande área quantas vezes puder e uma oração fervorosa também funciona. Depois, é mãos a obra e boa sorte, pois será preciso.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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