Na marca do cal - Crônica de Michel Yakini

Michel Yakini (São Paulo) é autor do livro Crônicas de um Peladeiro e mensalmente escreve para o Nagalera.

Na marca do cal - Crônica de Michel Yakini
Foto: Nagalera FC / Final do campeonato do Arenoso 2018.

A marca do pênalti sempre foi um deus-nos-acuda pra mim. Não que eu nunca tenha acertado um, pelo contrário, já botei goleiro-de-um-lado-bola-do-outro, meti alguns no ângulo, daqueles que você pode chutar dez vezes e o arqueiro não vê a cor, outras vezes fechei os olhos e dei uma madeirada pra afundar bola, rede e tudo mais que tiver na frente. O diabo é que os erros sempre marcam mais que os acertos e tem uns pênaltis que me perseguem desde menino, tipo condenação perpétua.

O primeiro que cobrei na vida foi num clássico Rua 9 vs Rua 10, eu tinha uns oito anos. Naquele dia o Branco veio me chamar em casa e disse: “Os caras querem jogar com a gente e cê tá escalado!”. Me deu um frio na espinha, mas não titubeei. O jogo tava pegado, o asfalto fervendo e o zero-a-zero disputado, eu era agregado da Rua 9, e fiquei na defesa. Jogo fora de casa; juiz nosso: pênalti pra gente. O irmão do Branco, técnico do nosso time, abriu uma roda no meio da rua e olhou bem pra minha cara: “Bate você, que tá mais calmo”.

Não sei dá onde ele tirou essa ideia, eu tava em choque, pode ser que eu fosse o que tremia menos, ou ele pode ter dito isso pra me dar confiança, sei que foi embaçado. Pra não ficar em cima do muro no meio da mulecada, segurei a bomba. Só me lembro do goleiro se movendo como que cercasse um frango, entre dois pedaços de bloco, batendo as luvas de frentista de posto. Fechei os olhos, corri, corri, corri, chutei de bico... Quando abri os olhos o Branco me fez um sinal de reprovação. Fazê o que, só erra quem tenta, nénão?

Depois dessa fiquei marcado. Era sair um pênalti e ninguém me cogitava, e quando jogava com desconhecidos eu disfarçava até alguém se apresentar, se o cara errasse, aí eu me vingava, descontava todas as injurias no perdedor. Jogo é jogo!

O mais marcante foi um que eu cobrei contra um time ali do Piqueri, quando eu jogava no Dentão do Paulistinha de Pirituba, a gente perdia de 5 a 0, o Nenê saiu aos trancos na ponta esquerda, se jogou e arrumou um pênalti, a chance do gol de honra. Poxa! Eu era o batedor oficial, tava decidido em carimbar a goleada. Chutei bem...

...Tão bem que acertei a trave. Isso foi há quase vinte anos, mas o Nenê não pode me ver que fala disso, ficou inconformado, queria ter chutado, viu seu esforço em vão, parece até que se eu convertesse a gente ia virar o jogo. Acho que ele se esqueceu que já tava 5x0 pros caras.

Esse lance é tão famoso que uns anos atrás eu tava com a minha namorada, e naquela de escambar histórias, falei que conhecia um tal de Nenê que mora perto da casa dela. Na hora ela disse: “Ah, então você é o Michel que o Nenê tanto fala?”. Ela me contou que ele vivia falando de um bendito pênalti, ficou traumatizado, e toda vez que o assunto era futebol vinha essa história de um tal Michel que perdeu um  pênalti, que ele se matou pra conseguir, que era o gol de honra e blá, blá, blá... Um drama de fazer inveja a Shakespeare. O pior é que o namoro deu em casamento e toda vez que a gente arma um encontro entre amigos, senta que lá vem reclamação...

Fazê o quê? E os gols que eu fiz, quem se lembra? Por sorte o Diogo, outro grande amigo, disse que tinha guardado na mente um gol que eu marquei na escola. Salvou a pátria! Esse sim é solidário, ressalta as glórias e não os defeitos da vida alheia. Pelamor, viu!

Só que na escola meu passado em penalidades é melancólico. No campeonato entre colégios, no último ano do colegial, eu tava cheio de moral, capitão do time e os caramba. No primeiro jogo fiz até um gol, mas terminou empatado, a decisão foi na bendita marca, os batedores iam chutando de forma alternada, lembro que pela nossa escola chutou o Neto, meu xará Michel (que depois virou o Guerreiro Michel, ídolo do Ceará, que também jogou no Vitória) e eu. Marcamos em duas rodadas seguidas, e na terceira cobrança eu busquei o canto milimetricamente e acertei o alambrado.

Fiquei uma semana sem ir pra escola, de vergonha. Pra esquecer. Em compensação essa foi uma época clássica no Zenaide, onde eu estudei. Além do Guerreiro Michel estudava lá: o irmão dele, o Nenê (não o do pênalti), artilheiro do campeonato português em 2009 e o Serjão, que batia uma bola também, mas gostava mesmo de vôlei, e depois se tornou o famoso Sergio Escada, ou melhor, Serginho, o melhor libero de vôlei do mundo. A escola era cheia de talentos, vai vendo! Só que o meu talento com a bola murchou.

Se a vida fosse decidida em cobrança de pênalti eu chutaria a minha pra fora e se pênalti é questão de sorte, sou o maior dos azarados. Tenho que me contentar com a desculpa de que pênalti até Pelé, Zico e Maradona já perderam, quem sabe isso me absolve. Por enquanto, exorcizo meus pênaltis perdidos pela escrita, pra evitar que esse complexo vire uma doença crônica.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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