Pique de Bola! - Crônica de Michel Yakini

Os miúdos têm talento e mesmo em tempos de seca, o tédio dos estádios ainda é flor no terrão, brotando caneta, pedalada, chapéu e lambreta na habilidade da molecada.

Pique de Bola! - Crônica de Michel Yakini
Foto: Cassimano / www.cassimano.com.br/#varzea

“não passo de um mendigo do bom futebol.
Ando pelo mundo de chapéu na mão
e nos estádios suplico:
 — Uma linda jogada pelo amor de Deus!”
Eduardo Galeano

Ando sem alegria pra ver futebol. Parece que o encanto se quebrou. Tá difícil assistir 90 minutos sem nenhuma jogada bonita sequer, mas esta semana parei pra ver a molecada no campinho onde fui criança e a nostalgia me invadiu com uma finta desconcertante, como naqueles jogos sem sal, em que o talismã entra nos minutos finais, feito um leão querendo engolir o mundo, sacudindo a batucada do peito e sofre um pênalti. Ufa!

Frequento estádios faz uma cota, desde que, ainda moleque, convencia meu pai a me levar ao Morumbi e ao Pacaembu pra ver as pelejas. Ele não gostava de futebol, mas lembro dele comentando um gol do Nélio, camisa 10 do Mengão, numa arrancada fulminante, num gol maravilha: “Esse cara tem pique de bola, hein?!”. Assim ficou, quando um craque enchia os olhos do meu pai essa frase era de praxe, eu ria como se ele tivesse feito um gol e oferecido pra mim.

Depois o tio Tato me acompanhou nos jogos. Ele me fez ser um apaixonado pela bola. Me convenceu a ser são-paulino, contava as glórias do ataque tricolor de forma épica. Eu sentia heroísmo naquilo, via um gol do Careca, uma finta do Müller, a rapidez do Sidney e a classe do Silas e corria pro quintal, queria ser como os caras. Pegava qualquer coisa que pudesse ser a sonhada bola de capotão e ficava cortando uma zaga imaginária, chutava no ângulo da parede e saia correndo de braços abertos pela cozinha.

Até que o Careca e os outros se foram, viraram brasilianos na terra da velha bota. Me restava ficar em frente à TV, todo domingo de manhã, arrumando a antena com bombril e torcendo pra passar o jogo do Napoli, o nanico italiano que ficou forte com os petardos do Carecone, e gigante com Don Diego, o El Pibe argentino, o único que corria com a bola grudada nos pés.

Também gostava de ver os jogos do Milan, ficava observando aquele grandalhão do Suriname (na época acreditava ser um holandês) correndo altivo com a bola, com suas tranças e seu charmoso bigode. Rudd Gullit é o camisa 10 mais injustiçado da época, pois quando se fala do Milan e da seleção holandesa desse tempo os holofotes miram pro camisa 9, Van Basten, e as muitas assistências de Gullit não são lembradas com a mesma dignidade. Gullit era um cara politizado, quando ganhou o prêmio de melhor jogador da Europa ofereceu a Nelson Mandela, que estava encarcerado injustamente pelo Apartheid na África do Sul. Talvez minha admiração pelo fino da bola e pelo caráter de Seedorf, outro holandês nascido no Suriname, venha dessa nascente.

Lembro que o futebol andava meio capenga pela ressaca da Copa de 1990, mas aos poucos a beleza voltou a reinar. Telê Santana montou um esquadrão no tricolor do Morumbi, empolgante. Fui a vários jogos com meu tio, aquele time era poético, jogava no ritmo do Trio Esperança: É gooolllll!!!! … O meu time é a alegria da cidade… É gooolllll!!!!… Que felicidade…

Frequentei os treinamentos também, gostava de ver o Telê de perto, jeito ranzinza, cheio de moralismos, mas era o autografo mais disputado, reverenciado: “Mestre, mestre…”. Eu, moleque de tudo, olhava pra ele com orgulho. Formávamos um bonde pra cabular aula e ir aos treinos na Barra Funda, o Alê, o Bola e eu. A gente batia cartão lá. O Alê era palmeirense e por isso íamos aos treinos do Palmeiras também. Na volta era só sorrisos, com um monte de papel rabiscado de autógrafos e contando vantagem na vila, tentando imitar as magias na pelada.

Comecei a correr no terrão aos sete, querendo ser ponta direita, se chegar hoje numa pelada e disser que é ponta direita vira chacota. Depois virei médio volante e nas últimas investidas lá pelos dezoito e dezenove anos fui parar na quarta zaga. Do terrão ficaram as lembranças e o joelho latejante, das arquibancadas e alambrados essa incógnita de querência e decepção.

Sei que não vou deixar de ir aos estádios, é paixão, tá além. Vou pelo futebol, pela magia, pelo gol, só que muitas vezes nem isso encontro, mas hoje a geral que inflama e salva meus dias são os raros campinhos do meu bairro, ao ler o que os pés descalços da molecada escrevem por aqui. Admiro, dá vontade de correr junto. Os miúdos têm talento e mesmo em tempos de seca, o tédio dos estádios ainda é flor no terrão, brotando caneta, pedalada, chapéu e lambreta na habilidade da molecada. É cada fera que se meu pai visse eles jogando, com certeza diria: “Esses meninos tem pique de bola…”

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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