Futebol não é um jogo - Crônica de Michel Yakini.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro e escreve mensalmente para o Nagalera.

Futebol não é um jogo - Crônica de Michel Yakini.
Foto: Nagalera FC / Jackson Monteiro

Quando eu era pequeno ouvi um senhor dizer que somente um entre mil costumava vingar no mundo do futebol. Eram palavras do Sr. Guimarães, fundador do Clube Pequeninos do Jockey. Teimoso que sou, segui. Imaginei que poderia ser esse “um”, mesmo sabendo que era mais fácil estar entre os mil. Rodei por diversos times e lugares e o futebol me ensinou coisas que levei pra vida.

Peguei muito ônibus, trem e metrô percorrendo os quatro cantos atrás da pelota, Isso fez eu expandir meu território físico e mental. Até então, meu mundo era meu bairro. As primeiras vezes que fui pro Parque Arariba, Vila Mazzei, Guarulhos, Santo André, Mauá, São José dos Campos, Arujá, entre outros rincões, foi por causa do futebol.

A cancha que mais me marcou foi o antigo campo dos XI Garotos do Piqueri, que ficava numa favela na beira da Marginal Tietê, onde os moradores assistiam aos jogos pelas janelas e vira e mexe a bola parava dentro das casas. Quando os jogos terminavam, o refrigerante, o pão e a mortadela vinham na medida certa, então era preciso ser solidário pra ninguém ficar sem comer.

Também não pegava bem terminar o jogo todo suado e esfolado e colocar a roupa limpa pra voltar pra casa, a mulecada vinha pra cima e tirava uma onda, então tomar banho depois de cada treino ou jogo era fundamental, mesmo quando os vestiários tinham apenas um cano com água gelada e estavam alagados.

Além disso, desenvolvi a habilidade de falar em público. Tive a honra de ser capitão de alguns times e isso me fazia buscar a palavra certa pra dizer antes e durante os jogos, seja pra chamar a atenção de algum companheiro ou pra dialogar com o árbitro da partida, mas essa oportunidade também me fez exercitar a humildade, porque era preciso baixar a bola e saber ouvir.

Quando me tornei juvenil no time do A.D Guarulhos, me lembro que nosso técnico reuniu o grupo e falou que ser jogador profissional era importante, mas ele se sentia mais feliz por contribuir com nossa formação como cidadãos. Foram palavras fortes como os dizeres do Sr. Guimarães.

Já na categoria juniores fiz testes com o time profissional do C.A Guaçuano de Mogi Guaçu, interior de SP, me alojei debaixo da arquibancada do estádio “Camachão” e comecei a entender melhor qual era o sentido do “um entre mil” e a importância de ser um “cidadão”, antes de ser um profissional.

Pude conversar com jogadores que estavam há meses sem ver a própria família, pois vinham de outras regiões, alguns do Norte e Nordeste, tentar a sorte na quarta divisão do futebol paulista. Os caras não recebiam o salário em dia, diziam que enquanto o time tava ganhando a grana e a comida chegavam, caso contrário tudo virava uma típica relação escravagista entre jogadores e empresários.

Fui dispensado do Guaçuano e dali pra frente não tentei mais nada, mas comecei a me dar conta que mesmo se eu me tornasse um profissional fatalmente estaria entre a maioria dos jogadores no Brasil que ganham um mísero salário e não são pagos em dia.

Uma pesquisa divulgada pela CBF em 2019, intitulada "Impacto do Futebol Brasiliero", demonstra que dos 88 mil jogadores profissionais registrados na entidade, 55% ganhavam até R$ 1 mil, e apenas 11,6 mil tiveram contratos ativos naquela temporada, ou seja, a maioria dos jogadores no país ganham mal ou estão desempregados. 

Perceber isso na prática me causou uma certa frustração, resolvi desistir desse sonho e ir buscar um trampo, porque eu já tava virando um peso econômico em casa. Fazia alguns bicos, olhando carros na feira, na frente da igreja, carregando sacolas, depois trampei no buteco da família e fui fazendo outras virações, até começar os registros em empresas de diversos ramos.

Me tornei um trabalhador comum, um cidadão invisível entre milhões, mas guardei os ensinamentos que o mundo da bola me trouxe e tenho certeza que se hoje estudo, faço arte, escrevo livros, organizo atividades, faço palestras e aulas pelo mundo afora é porque as sementes daquele tempo vingaram a seu próprio modo.

Em 2016, por conta da literatura, recebi uns convites pra fazer palestras em universidades na Europa. A primeira parada foi em Berlim, onde visitei um posto que presta atendimento aos refugiados sírios, iraquianos e africanos, onde minha amiga Ingrid Hapke era educadora voluntária. Por lá me aproximei de um menino sírio e seu pai. Não lembro o nome deles e não soube como chegaram na Alemanha, se caminhando pela floresta da Rússia ou de avião, mas a mochila do pequeno tinha uma bola de futebol. Quando vi a redonda no pé dele falei "i'm brazilian", o pai tocou a pelota pra mim e disse "oh, ronaldinho" e ficamos jogando altinha, enquanto o pequeno sorria com minhas caneladas.

Nesse mesmo rolê fui à Espanha e aproveitei os caminhos pra ir numa partida do Real Madrid, que terminou 5x1 contra o Sporting de Gijón, com gols de Cristiano Ronaldo, Bale e Benzema e cia. Até cochilei durante a partida, mas chorei na chegada quando vi o estádio Santiago Bernabéu na minha frente. Um filme passou pela minha mente e nele os meus sonhos de criança se realizavam nos mesmos lugares, mas de outras maneiras.

Na volta, no metrô, fui lendo um catálogo com fotos do elenco do Real e um garotinho ficou olhando no colo de sua mãe. Pedi licença, dei o catalogo pra ele e perguntei qual era o jogador que ele gostaria de conhecer, ele citou o Chicharito Hernandéz, craque mexicano que não estava mais em Madrid. Não contei sobre a ausência do Chicharito, pois mesmo que sua vontade não fosse possível naquele momento, confiei que, assim como aconteceu comigo, outros encantos podem surgir na vida daquele miúdo a partir dessa fonte abundante e complexa chamada futebol.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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