Destino Jaraguá (Memórias do Terrão) - Crônica de Michel Yakini.

Quando lemos JA – RA – GU – Á ... JA – RA – GUÁ, é esse, é esse... Demos sinal sorrindo, torcendo pro motorista parar e... ufa! Ele parou.

Destino Jaraguá (Memórias do Terrão) - Crônica de Michel Yakini.
Foto: Divulgação

Tinha uns 7 ou 8 anos, minha mãe vendia paçoca, doce de leite, bala e gibi na porta de casa e vira-e-mexe eu ficava ali ajudando ela e brincando na calçada com meu amigo Paulo Bola, sempre chutando alguma coisa. Quando num era bola, era latinha, quando não uma garrafa plástica e na maioria das vezes valia um voleio na imaginação.

Eu praticava ”afinação da arte de chutar tampinhas”, como aquele personagem do livro de João Antônio, que aprimorava o chute em tampinhas pra dar sentido à vida. Minha meta era acertar o bueiro do outro lado da rua, pra aprender a bater faltas e ser infalível como Zico, o camisa dez da Gávea. 

Me lembro de uma vizinha que quando me via fazendo da calçada um estádio, cantava o refrão do Luiz Américo "é a camisa dez da seleção...". Aquilo me arrepiava e eu me dedicava ainda mais nos chutes imaginários.

Um dia um cara, de aspecto sério, vestido todo de social, parou pra comprar um doce, nos viu correndo pra lá e pra cá e perguntou se a gente queria jogar num time.

Como assim? Jogar num time de verdade? Com bola, shorts, meião e camisa? Só pode ser mentira, pensamos. Mas o cara insistiu na ideia, deixou um papel anotado com o endereço pra gente ir sábado no campo do Taipas F.C e explicou que precisava pegar um busão sentido bairro do Jaraguá pra chegar lá.

Olhamos pra minha mãe esperando a confirmação, mas ela disse que conversaria com meu pai e se ele autorizasse tudo bem. Quando meu pai voltou do trabalho ouviu nossa história atentamente, viu nossos olhinhos de piedade e disse somente pra gente tomar cuidado. 

Ficamos o resto da semana na ansiedade de chegar logo o dia e no sábado de manhã, assim que o Bola passou em casa, fomos pro ponto e pela primeira vez pegamos um ônibus sem a presença de um adulto. Quando lemos JA – RA – GU – Á ... JA – RA – GUÁ,  é esse, é esse... Demos sinal sorrindo, torcendo pro motorista parar e... ufa! Ele parou. Pedimos pra passar por baixo da catraca, o cobrador liberou, perguntamos se ele podia avisar quando chegasse no campo do Taipas, ele respondeu que sim. Era nosso dia de sorte.    

Fui o caminho inteiro olhando pela janela, pra ver se avistava nosso destino. Depois de muitas ladeiras li uma placa com o nome do time. Olhamos pro cobrador, ele deu sinal pra gente descer e falou que o campo era ali mesmo. Agradecemos e seguimos.

Meu coração batucava como as torcidas faziam aos domingos durante a entrada dos times nas pelejas do Centro Esportivo de Pirituba, mas dessa vez era eu quem tava prestes a entrar em campo.

Procuramos o cara que nos convidou, olhamos pra todo lado e nada. Vimos uma mulecada chegando, uns caras mais velhos, menos nosso anfitrião. Depois de um bom tempo, um senhor percebeu nossa cara de tristeza e perguntou se a gente veio pra jogar. Tentamos explicar mais ou menos a história e por sorte o cara avisou da nossa presença, pois naquele dia ele não poderia ir.

Vocês são Fraldinha, né? Corre pro vestiário que tá todo mundo se trocando, ele disse, e lá fomos nós com nossa sacola de plástico e um par de Bamba Cabeção dentro dela. Chegando lá mais uma pergunta difícil: “Cê joga de quê?”, meu amigo mais ligeiro falou “ponta direita” e recebeu a camisa 7. Na pressão respondi que não sabia e o técnico me deu camisa 14 e falou pra entrar no segundo tempo. Antes, o cara olhou desconfiado pros nossos pés, mas como não éramos os únicos sem chuteira, ele não disse nada.

Meu amigo, que já tinha Bola no nome, correu pra caramba, fintou e jogou com raça e elegância. Já tinha a malícia de jogar com uns meninos mais velhos na rua em que ele morava e foi um dos melhores em campo, nascia ali um futuro craque do futebol de várzea. Entrei no segundo tempo no lugar do camisa 2, com as mãos trêmulas, disfarçando pra ninguém perceber. Fui pra lateral do campo e fiquei dando chutão pra frente, toda vez, do jeito que dava.

O jogo terminou empatado 1x1 contra o Jardim Regina de Pirituba, equipe que eu tive a honra de vestir a camisa e ser campeão, anos depois, nas categorias Dentinho e Dentão. Apesar do empate nós saímos com um gosto de vitória. No vestiário nossa recompensa pelo empenho foi comer pão com margarina e ki-suco vermelho, o lanche mais gostoso. Voltei pra casa todo pomposo. Foi como estrear no Pacaembu lotado. Na volta, pegamos o busão com mais tranquilidade e descemos no ponto certo, perto de casa. 

Quando chegamos minha mãe perguntou se tudo correu bem e sorriu aliviada ao ouvir nossa história. E assim passou a ser todos os sábados, pois desde então éramos jogadores do Fraldinha do Taipas F.C, meu primeiro time.

Até hoje quando passo no bairro de Jaraguá e vejo o campo do Taipas F.C sinto um carinho especial, pois foi onde me senti importante pela primeira vez, foi lá que a poeira da cancha grudou na camisa suada e entrou nos meus poros. O terrão entrou nas veias e ficou no meu DNA. Um encanto inexplicável que começa num campo de várzea no bairro do Jaraguá e me acompanha por toda vida.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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