A encruzilhada e o craque da flecha de ouro - Crônica de Michel Yakini.

Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro - provérbio Iorubá

A encruzilhada e o craque da flecha de ouro - Crônica de Michel Yakini.
Foto: Divulgação / Instagram

Pois é… pode ser que a euforia pelas atuações, palavras e gestos certeiros de Paulinho, o sete flechas da seleção olímpica de futebol, pode ser caldo pra mais uma apropriação midiática. Há quem diga que tudo acabará numa série no canal pago e em tudo de mais manipulador pra ditar a moda, o consumo, a distração e a massificação da vez, mas como o craque mesmo vem dizendo "nunca foi sorte, sempre foi Exu" e esse verbo me fez mirar de outra maneira pras encruzilhadas anunciadas por esse rapaz flecheiro. 

A caminhada de Paulinho não vem de hoje. Ele foi um dos protagonistas no pré-olímpico disputado na Colômbia em 2020, sendo vice-artilheiro e marcando no último jogo contra a Argentina, garantindo a vaga pra Tóquio. Antes, ele estreou no Vasco da Gama em 2017, marcou duas vezes na vitória sobre o Atlético Mineiro, sendo o jogador mais jovem a marcar na história do Brasileirão e logo depois foi contratado pelo Bayer Leverkusen da Alemanha. Ainda antes, ele havia participado e sido campeão em todas as seleções de base, do sub-15 ao sub-20. E tudo começa com um garoto de exímio talento, criado na Vila da Penha, que jogava de futsal no Madureira E.C, do Rio de Janeiro. 

Quando Paulinho, filho de Oxóssi e praticante do Candomblé, evocou a sabedoria de Exu pra celebrar os frutos colhidos durante as suas caçadas futebolísticas, me remeteu a algumas ideias de Luiz Rufino e sua Pedagogia das Encruzilhadas, por alguns motivos. 

Primeiro, porque isso tem a ver com educação, no sentido amplo do termo,  que pra Rufino é "um fenômeno humano implicado entre vida, arte e conhecimento", que é "tecido e compartilhado nos cotidianos" por meio de "memórias, conhecimentos e aprendizagens", ou seja, Paulinho nos convida a mirar sua trajetória pelo prisma das encruzilhadas, pela via das complexidades e dos movimentos e não do "isso por causa daquilo" tão comum na visão limitada e colonizada de aprendizagem que cultivamos. 

Segundo, porque isso também é sobre futebol. Já que Paulinho é um atacante dos mais habilidosos dessa geração, e mantém vivo o respiro do "futebol arte" ou "futebol de poesia" que prima pela criatividade e pelo drible, que surgiu como estratégia dos jogadores negros no início do futebol no Brasil, pois segundo Renato Noguera, no artigo O conceito de drible e o drible do conceito: "como os jogadores negros não podiam tocar nos jogadores brancos, a hipótese foi o surgimento do drible como alternativa para que os jogadores negros pudessem se movimentar em campo". E Noguera vai além, ao dizer que esse jeito nosso de "driblar", se tornou "dibrar", porque pode vir da "palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, radical da palavra “dibotar”, que significa discursar, palavrear".

A encruzilhada faz morada nesses vãos, pois quando os jogadores negros decidem dibrar o ranço colonial, eles realizam o cruzo de duas perspectivas da Pedagogia das Encruzilhadas, a de que "os saberes de encruzilhadas são saberes de ginga, de fresta, de síncope, são mandingas baixadas e imantadas no corpo, manifestações de ser/saber inapreensiveis pela lógica totalitária" e porque "a prática das encruzilhadas como um ato descolonial não mira subversão, a mera troca de posição, mas sim a transgressão", ou seja, os jogadores não destroem, nem criam outro jogo, mas fazem valer a força vital de Exu "senhor das gingas, dribles e esquivas", mastigando, incorporando, cuspindo e transformando o contexto adverso em possibilidade.

Assim, esse craque vascaíno da flecha de ouro transgride o espaço/tempo, e me reporta ao início do século vinte, em que seu Vasco incomodava os times de elite do Rio de Janeiro, por vencer muitos jogos com uma equipe negra e ligeira na sabedoria do dibre. Por isso, não me preocupo com possíveis "apropriações" desse ato gingado de Paulinho, que movimentou as discussões sobre política e racismo religioso, tão distantes do verbo futebolero. Se isso acontecer, as encruzilhadas hão de cuidar, pois no eixo delas tem muitos versos e um deles diz que "Exu nasceu antes que a própria mãe" e não há nada que possa controlar, eliminar ou enganar as aberturas, os fundamentos e os dibres desse caminho.

Michel Yakini é escritor, autor do livro Crônicas de um Peladeiro (Elo da Corrente Edições, 2014).

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